Ideologia, Despolitização e Polarização Política no Brasil Contemporâneo: uma análise crítica

Ideologia, Despolitização e Polarização Política no Brasil Contemporâneo:

uma análise crítica


*Luiz Antonio Sypriano


Resumo

Este artigo analisa a recente pesquisa Datafolha (LIMA, 2025) que identifica a existência de "petistas de direita" e "bolsonaristas de esquerda" como um fenômeno político-social que, longe de representar uma contradição lógica, expressa o aprofundamento da despolitização da população em relação à política brasileira. A partir do referencial teórico marxista, especialmente da crítica da ideologia desenvolvida por Karl Marx, sustenta-se que tanto a direita quanto a esquerda institucionalizadas operam, em grande medida, como formas da ideologia burguesa enquanto permanecem inscritas na lógica da reprodução do capital. Argumenta-se que a conciliação de classes, característica do social-liberalismo contemporâneo, contribui para a dissolução do antagonismo capital–trabalho, favorecendo a emergência e o fortalecimento de discursos autoritários e de extrema direita.


Palavras-chave: Ideologia. Marxismo. Despolitização. Esquerda e direita. Luta de classes.


Introdução


A divulgação de pesquisa recente do Instituto Datafolha (LIMA, 2025), repercutida pela imprensa nacional, indicando que parcelas significativas de eleitores identificados como petistas se afirmam de direita e, inversamente, bolsonaristas se declaram de esquerda, foi interpretada por analistas como um sinal de confusão ideológica ou incoerência política do eleitorado. Este artigo propõe uma leitura alternativa, fundamentada na crítica marxista da ideologia, segundo a qual tal fenômeno é expressão de um processo mais profundo de esvaziamento do conteúdo político das categorias "direita" e "esquerda" no interior da sociabilidade capitalista rentista contemporânea, em um país periférico, marcado pelo subdesenvolvimento e pela dependência.

Sustenta-se que a polarização política no Brasil, hegemonizada pelas figuras de lideranças populistas como a de Luiz Inácio Lula da Silva e Jair Bolsonaro, ocorre em um contexto de despolitização estrutural, no qual o antagonismo de classe é sistematicamente ocultado por discursos de conciliação, moralização da política ou negação abstrata do sistema. A partir dessa perspectiva, a pesquisa Datafolha não revela um paradoxo, mas confirma as consequências históricas da mediação ideológica exercida pelas formas políticas do capitalismo periférico brasileiro.


A Ideologia em Karl Marx: Fundamentos Teóricos


Para Karl Marx, a ideologia não consiste simplesmente em um conjunto de ideias falsas ou equivocadas, mas em um sistema de representações socialmente produzidas que cumpre a função de mascarar as relações reais de exploração e dominação de classe. Em A Ideologia Alemã, Marx e Engels (2007) afirmam que as ideias dominantes de uma época são, em última instância, as ideias da classe dominante, pois esta controla tanto os meios materiais quanto os meios simbólicos de produção.

Nesse sentido, a ideologia atua, ao naturalizar relações sociais historicamente determinadas, apresentando-as como universais, inevitáveis ou justas. Dessa forma, contribui para a reprodução da ordem social existente ao transformar interesses particulares da classe dominante em interesses aparentemente gerais. Trata-se, portanto, de um mecanismo central na constituição da hegemonia burguesa, na medida em que produz consentimento e reduz a percepção do conflito de classes.

Já no capitalismo, a ideologia opera de modo especialmente eficaz, ao deslocar o foco da exploração material para narrativas abstratas de mérito, cidadania formal ou igualdade de oportunidades, ocultando a apropriação privada da riqueza socialmente produzida.


Direita e Esquerda como Categorias Ideológicas no Capitalismo


A oposição e a polarização entre "direita e esquerda", no Brasil, embora amplamente utilizada na análise política contemporânea, não constitui uma categoria central no pensamento marxiano. Sua origem remonta à Revolução Francesa e à organização parlamentar do período, adquirindo, ao longo do tempo, significados diversos e historicamente mutáveis.

Sob uma perspectiva marxista, direita e esquerda, enquanto se mantêm no interior da ordem capitalista e aceitam a propriedade privada dos meios de produção, tendem a funcionar como expressões distintas da ideologia burguesa. Enquanto a "direita", de modo geral, defende abertamente os princípios do liberalismo econômico, da hierarquia social e da conservação das estruturas existentes; a "esquerda" (dita esquerda progressista) institucional, por sua vez, frequentemente assume uma postura reformista (tanto em sindicatos como partidos que se consideram trabalhistas), propondo mecanismos de mitigação das desigualdades sem questionar as bases estruturais da exploração capitalista (WOOD, 2003).

Nesse sentido, ambas podem atuar como formas de gestão política do capitalismo, diferenciando-se mais pelos meios do que pelos fins, o que contribui para o esvaziamento do antagonismo capital–trabalho como eixo central da disputa política.


A Pesquisa Datafolha e o Processo de Despolitização


A identificação de "petistas de direita" e "bolsonaristas de esquerda" deve ser compreendida à luz do processo de despolitização promovido pela conciliação de classes. No caso do Partido dos Trabalhadores (PT), a adoção de alianças amplas com frações conservadoras do Congresso Nacional, a aproximação com o agronegócio e ao neopentecostalíssimo, assim como a submissão às diretrizes do capital financeiro internacional, evidenciam um projeto político que privilegia a governabilidade em detrimento da transformação social.

Enquanto a estratégia de governar "para todos", em uma sociedade marcada por profundas desigualdades estruturais, resulta, na prática, no atendimento prioritário aos interesses das classes dominantes. Assim, não é contraditório que parte de sua base social perceba tal projeto como alinhado à direita do espectro político.

De modo análogo, a autodeclaração de bolsonaristas como pertencentes à esquerda expressa a captura, pela extrema direita, de um discurso difuso de negação da ordem política existente. Tal discurso encontra ressonância em setores populares desamparados e controlados pelas religiões, que não se reconhecem mais na esquerda institucional, percebida como integrada ao mesmo sistema de dominação que afirma combater.


Conciliação de classes e fortalecimento da extrema direita


A própria admissão de Luiz Inácio Lula da Silva de que campanhas eleitorais são realizadas à esquerda enquanto os governos operam à direita explicita o núcleo do problema analisado neste artigo. Por isto se reafirma que a conciliação de classes, longe de neutralizar conflitos, contribui para a frustração política, a perda de referências ideológicas e a abertura de espaço para soluções autoritárias, assim como o fortalecimento da ultradireita.

Como argumenta Poulantzas (2000), o Estado capitalista possui uma autonomia relativa que lhe permite mediar interesses de classe, mas essa mediação ocorre sempre dentro dos limites da reprodução do capital; afirma, ainda, que, quando a esquerda abdica de seu horizonte estratégico de superação do capitalismo, passa a administrar suas contradições, reforçando, ainda que involuntariamente, as condições para o avanço da extrema direita.


Considerações Finais


A análise da pesquisa Datafolha (LIMA, 2025), à luz da crítica marxista da ideologia, permite concluir que a aparente confusão entre direita e esquerda não é resultado de ignorância política das massas, mas expressão de um processo histórico de esvaziamento do conteúdo classista da política institucional. Por conseguinte, reafirma-se que, enquanto o antagonismo capital–trabalho permanecer ocultado pela conciliação e pelo reformismo, as categorias tradicionais da política tendem a perder significado concreto.

Nesse sentido, para Marx, a superação da ideologia dominante não se dá pela substituição de rótulos políticos, mas pela construção da consciência de classe e pela práxis revolucionária do proletariado. Desta forma, somente a partir da ruptura com a propriedade privada dos meios de produção e com o Estado capitalista, só é possível vislumbrar a superação da falsa consciência e a construção de uma sociabilidade emancipada.


Referência Bibliográfica


LIMA, Ana G. Oliveira. Datafolha: 34% dos petistas se posicionam à direita, e 14% dos bolsonaristas, à esquerda. Folha de São Paulo, São Paulo, 26/12/2025. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2025/12/datafolha-34-dos-petistas-se-posicionam-a-direita-e-14-dos-bolsonaristas-a-esquerda.shtml>. Acesso em: 26/12/2025.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007. Disponível em: <https://www.kufunda.net/publicdocs/A-Ideologia-Alem%C3%A3.pdf>. Acesso em: 26/12/2025>.

_____. O capital: crítica da economia política. Livro I. São Paulo: Boitempo, 2013. Disponível em: <https://redept.com.br/uploads/biblioteca/MARX,_Karl._O_Capital_._vol_I_._Boitempo_._.pdf>. Acesso em: 26/12/2025>.

POULANTZAS, Nicos. O Estado, o poder, o socialismo. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

WOOD, Ellen Meiksins. Democracia contra capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2003.


*(Professor de Filosofia da Rede Pública Estadual do Paraná)


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