A SEITA DE MASSA BOLSONARISTA NO BRASIL E A FORMAÇÃO DA FALSA CONSCIÊNCIA NACIONAL: Uma análise a partir de Consciência e Realidade Nacional, de Álvaro Vieira Pinto
*Luiz Antonio Sypriano
“O entreguismo, sem embargo de todas as suas revoltantes manobras materiais, é no plano conceitual um fenômeno de alienação.” (AVP, CRN-CC. Livro II, p. 396)
Resumo:
Este artigo analisa o fenômeno político-cultural do bolsonarismo como uma seita de massa no Brasil contemporâneo, um país periférico e dependente, utilizando como fundamento teórico a obra Consciência e Realidade Nacional (1960), do filósofo brasileiro Álvaro Vieira Pinto (1909-1987). A partir de categorias como consciência ingênua, alienação ideológica, dependência mental e interdito epistemológico da nação, demonstra-se como o bolsonarismo reatualiza mecanismos históricos de produção de falsa consciência e de atraso político, cultural e econômico. O estudo evidencia como o ecossistema bolsonarista — religioso, militarizado, conspiratório e anticientífico — se estrutura como uma forma de anti-nação, bloqueando a consciência crítica e servindo à lógica da dependência.
Palavras-chave: bolsonarismo; Álvaro Vieira Pinto; falsa consciência; consciência nacional; dependência; seita política.
Introdução
O bolsonarismo consolidou-se desde 2018, com a eleição para presidente da República brasileira de Jair Bolsonaro, como um fenômeno político-cultural que transcende a dimensão eleitoral, constituindo-se como uma seita de massa dotada de ideologia própria, doutrinação sistemática e mecanismos de captura emocional e cognitiva. Esse fenômeno pode ser analisado à luz da obra clássica de Álvaro Vieira Pinto (AVP), Consciência e Realidade Nacional (CRN), publicada originalmente entre 1960 e 1961, na qual o autor interpreta os mecanismos sociais de formação da falsa consciência, da alienação nacional e da dependência mental nas sociedades periféricas.
Vieira Pinto afirma que a tarefa fundamental de qualquer projeto de dominação nacional é o de impedir o povo de tomar consciência da sua própria realidade, produzindo-se, assim, uma consciência ingênua, mítica ou estrangeirada. Pois o bolsonarismo, como se vera, consolida-se precisamente como forma contemporânea de interdito da consciência nacional, determinado por uma economia política da ignorância, por uma cultura da submissão e por um aparato midiático e religioso que transforma desinformação em método de poder, materializado nos altos investimentos nas redes sociais.
Consciência ingênua, alienação e dependência mental
Na obra analisada, Consciência e Realidade Nacional, Vieira Pinto propõe uma estrutura categorial que permite compreender fenômenos políticos de massa. Entre suas noções centrais estão:
Consciência ingênua: forma de apreensão imediatista e acrítica da realidade, baseada em aparências, emoções, dogmatismos e explicações moralistas.
Consciência alienada: percepção da realidade construída sob a ótica dos interesses das classes dominantes ou de potências estrangeiras.
Dependência mental: internalização do colonialismo, levando o povo a rejeitar sua realidade e a adotar como verdadeiras as concepções de mundo exógenas.
Por conseguinte, Vieira Pinto vem a afirmar que no que se refere a alienação, esta consiste justamente na substituição da apreensão intelectual do real por uma imagem distorcida, que é inculcada pelas forças sociais - poder dominante - que têm interesse na manutenção da ordem existente.
Sendo que essa formulação prefigura com precisão o funcionamento da máquina ideológica bolsonarista, que opera pela produção massiva de imagens distorcidas do real, disseminadas por redes digitais, igrejas, militares e influenciadores, constituindo um ecossistema epistemológico fechado.
A seita de massa bolsonarista como aparato de alienação contemporânea
A engenharia da ignorância e a consciência mítica
Ao ponto que Vieira Pinto alerta que grupos dominantes recorrem a “formas míticas de consciência” para impedir o desenvolvimento de consciência crítica. No bolsonarismo, a consciência mítica manifesta-se na crença em:
teorias conspiratórias globais,
messianismo político,
demonização de adversários,
narrativas espirituais de guerra do bem contra o mal.
Esse ambiente confirma a observação de Vieira Pinto quando trata da consciência ingênua, convertida em problemas históricos em dilemas morais, ao tornar impossível enxergar as determinações reais que os produzem.
No que se refere ao bolsonarismo, esse transforma crises econômicas, conflitos geopolíticos e disputas institucionais em batalhas espirituais, interditando a análise racional.
O papel das classes médias na reprodução da alienação
Vieira Pinto analisa minuciosamente o comportamento das classes médias, a quem chama de “segmentos instáveis e ideologicamente vulneráveis” (2008, v.1, p. 201). Seu desejo de ascensão social e seu medo da igualdade, lastram uma subjetividade que se deixa capturar por ideologias autoritárias e anticomunistas.
Já no bolsonarismo, esse grupo foi central na disseminação:
do ódio à política,
do moralismo seletivo,
da estetização militarizada,
da lógica punitivista,
das fake news.
Porém, Vieira Pinto nos adverte que a classe média é frequentemente o núcleo propagador dessa ideologia dominante, isto porque se imagina independente quando, na verdade, é a mais sujeita à manipulação, aponta.
Por conseguinte, essa descrição encaixa-se de forma precisa na adesão fanática de segmentos médios ao bolsonarismo.
Militarização e regressão da Consciência Nacional
Vieira Pinto critica duramente a mentalidade militarizada como forma de consciência rebaixada. Ao analisar o papel dos militares nas sociedades dependentes, afirma que sua ideologia é anti-histórica, anti-intelectual e subordinada apenas aos interesses do imperialismo estadunidense, como se sabe da formação de seus agentes no comando sul.
É o que se associa ao bolsonarismo, quando reinseriu a ideologia militar como base moral da política, vista no 8 de janeiro de 2023, e promovendo:
culto à autoridade,
estetização das armas,
defesa da violência policial,
culto à ditadura e à tortura,
visão dualista de inimigos internos.
Esse movimento cumpre a previsão de Vieira Pinto ao afirmar que a militarização da consciência popular constitui a renúncia à reflexão, substituída pela obediência. Mais um exemplo, para isso, quando governos dos estados promovem a militarização das Escolas Básicas de suas redes públicas.
Enquanto no bolsonarismo, essa obediência é reforçada pela fusão com preceitos religiosos, criando um moral-militarismo messiânico, guiada pelo neopentecostalismo.
Religião, irracionalidade e manipulação de massas
Na obra em estudo de Vieira Pinto, nela, nunca adota postura anticristã, mas considera criticamente o uso político da religião. Para o autor, nos contextos de dependência, a religião pode atuar como um mecanismo funcional de conservação da alienação da massa.
Enquanto o bolsonarismo instrumentaliza setores neopentecostais para produzir:
despolitização,
demonização de adversários,
culto ao líder como “ungido”,
bloqueio cognitivo,
emocionalização irracional da vida pública.
Por isto que Vieira Pinto enfatiza que, quando a religião é mobilizada para impedir a compreensão racional da realidade, ela converte-se em instrumento de dominação, utilizada pela classe dominante.
Trata-se de uma formulação que descreve perfeitamente a teopolítica bolsonarista.
Anti-intelectualismo e proibição do Pensamento Crítico
Vieira Pinto dedica amplo espaço à crítica do antintelectualismo. Afirma que a dominação nacional depende da proibição do ato de pensar e estudar. A formulação mais e contundente do autor é quando se pronuncia que não há desenvolvimento nacional possível onde vigora a interdição da consciência crítica.
Enquanto o bolsonarismo promoveu:
ataques à universidade pública,
negação da ciência,
perseguição a professores,
destruição de instituições culturais,
produção sistemática de fake news.
Este é o interdito epistemológico descrito por Vieira Pinto: a nação é impedida de pensar a si mesma.
O bolsonarismo como anti-nação: a destruição da Consciência Nacional
Por conseguinte, a categoria mais importante de Consciência e Realidade Nacional é a de consciência nacional, definida pelo filósofo como a capacidade coletiva de compreender a realidade para transformá-la, ou seja, a de promover a Revolução Nacional.
Por outro lado, o bolsonarismo opera como força contrária, constituindo uma anti-nação, pois:
despreza os pobres e subalternos,
rejeita a soberania nacional,
submete o país a interesses geopolíticos externos,
repudia a industrialização,
odeia a ciência, a cultura e a educação,
transforma a política em guerra religiosa,
converte cidadãos em massa irracional manipulada.
Sendo que Vieira Pinto explica que o resultado da alienação profunda é aquilo que ele chama de “nação interditada”, ou seja, um país cuja população é impedida de perceber sua própria situação histórica. Entretanto, o bolsonarismo é, nesse sentido, a expressão mais acabada da interdição nacional no século XXI.
Considerações Finais
O estudo demonstrou que a obra Consciência e Realidade Nacional fornece categorias teóricas extremamente potentes para análise do bolsonarismo. Este fenômeno constitui uma seita política de massas, estruturada sobre pilares de:
ignorância organizada,
subjetividade militarizada,
manipulação religiosa,
colonialismo mental,
anti-intelectualismo,
hostilidade à soberania nacional.
Nesse sentido, se faz necessário a luta contra o bolsonarismo, que é, portanto, também uma luta epistemológica; porque trata-se de reconstruir a consciência crítica nacional, restituindo ao povo a capacidade de compreender sua realidade para transformá-la — tarefa histórica que está no centro do pensamento de Álvaro Vieira Pinto.
Referência Bibliográfica
PINTO, Álvaro Vieira. Consciência e Realidade Nacional. 1 e 2 v. Rio de Janeiro: Contraponto; Ibase, 2020.
*(Professor de Filosofia da Rede Pública Estadual do Paraná)
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