O Fetichismo em Marx como Expressão do Capitalismo e a sua Superação
O Fetichismo em Marx como Expressão do Capitalismo e a sua Superação
Luiz Antonio Sypriano*
Este texto é elaborado a partir do Artigo de Amaro Fleck sobre o Fetichismo em Marx, quando se faz uma síntese lógico-argumentativa dele, no sentido de resumí-lo para melhor compreender essa categoria fundamental para o pensamento marxista.
"O conceito de
fetichismo ocupa um lugar central na arquitetônica da obra [O Capital] e é de fundamental importância para a
correta interpretação da crítica de Marx ao modo capitalista de organização social", quando "trata, principalmente, da forma de organização econômica das sociedades
desenvolvidas" contemporânea: a capitalista. (p.142)
Assim, o que se busca demonstrar é que em "Marx, com o termo fetichismo, busca mostrar uma semelhança que
une o capitalismo com determinadas crenças mítico-religiosas." (p.142)
Para se entender melhor o termo fetichismo, busca-se pesquisá-lo nos Dicionários, no qual se apresenta: "a palavra 'fetichismo' deriva de 'fetiche'. 'Fetiche', em português, deriva da palavra
francesa 'fétiche', a qual, por sua vez, tem sua origem na portuguesa 'feitiço'. Esta última, por
fim, remete à latina 'facticius', significando aproximadamente o mesmo que 'artificial'. O
dicionário Le Petit Robert enumera três significados para 'fétiche': '1. Nome dado pelos brancos
aos objetos de culto das civilizações ditas primitivas', '2. Objeto ao qual se atribui um poder
mágico ou benéfico' e '3. Aquilo que é reverenciado sem discernimento'." (p.143)
No que concerne ao termo em estudo, se faz necessário destacar que "o fetichismo seria a primeira tentativa de explicar os
fenômenos da natureza através da crença em qualidades mágicas de determinados objetos" (p. 143), que se encontram no período mitológico das sociedades antigas. Por isto, reforça-se, ainda em dizer, que o "fetichismo é a crença de que certos animais ou coisas inanimadas são
dotados de qualidades sobrenaturais, divinas." (p.144)
Por outro lado, com Marx, vai ter um outro significado, "quando utiliza o conceito de fetichismo não para se
referir aos negros da Guiné adoradores de talismãs, mas sim aos brancos europeus trocadores de
mercadorias." (p.144)
Nessa utilização do conceito de fetichismo por Marx, vai mostrar que "este autor se apropria de um conceito, que antes fora usado para designar o outro, de
forma reflexiva, isto é, não para designar o alheio mas sim para explicar a sua própria sociedade,
ou melhor, o modo pelo qual os homens se relacionam nas sociedades onde impera o modo
capitalista de produção." (p.144)
Mas, a razão a que Marx o utiliza é uma só: "apontar para um elemento fetichista na sociedade
pretensamente civilizada [quando] visa corrigir uma visão deformada do mundo, [o de] conduzir o indivíduo que
afirma a superioridade da sua sociedade a uma posição na qual ele mesmo é obrigado a criticá-la
radicalmente." (p.144)
Com o início da ideologia liberal no capitalismo é quando Marx irá fundamentar suas regras na racionalidade humana, na qual se constitui o iluminismo esclarecido, com seu aporte no romantismo dos moderno; quando "Marx cria uma nova
posição ao criticar a modernidade rechaçando o romantismo." Ao criticá-los, demonstra a contradição, em desnudá-los na afirmação de que "a própria modernidade
possui elementos fetichistas, elementos estes que impedem a efetivação do próprio
esclarecimento." (p.145)
Este tempo é o da revolução burguesa, na qual faz surgir um outro modo de produção, o capitalista, - oposto ao feudalismo, - que criará a modernidade; mas, por sua vez, "possui assim um caráter antagônico: tem um imenso potencial
emancipatório, libertador, mas também mecanismos repressivos que impedem a efetivação da
emancipação. Trata-se, portanto, de criticar a modernidade e o esclarecimento a partir da própria
modernidade e esclarecimento, de uma crítica imanente voltada ao futuro." (p.145)
Nas obras de Marx, a teoria do fetichismo aparece primeiro nos Grundrisse, quando "o termo fetichismo já aparece no sentido usual da obra tardia
marxiana, a saber, referindo-se ao fato de que são atribuídas relações sociais às coisas. Porém, neste trecho, o fetichismo está no “materialismo tosco dos economistas” (materialismo este que é
também uma forma de idealismo), sendo simplesmente um erro de consciência que acaba por
mistificar o objeto estudado." (p.145-6)
Melhor explicando, "trata-se, então, de uma confusão na consciência entre aquilo que são as qualidades naturais das
coisas e aquilo que são relações sociais de produção, de tal maneira que estes economistas
naturalizam (e, portanto, eternalizam, deshistoricizam) relações historicamente determinadas,
configurações sociais específicas." (p.146)
Em uma outra obra, Em Para a crítica da economia política, "o termo já ganha outra conotação"; agora, "não mais se refere a uma postura
subjetiva do economista, a uma confusão na consciência, mas sim a uma necessidade objetiva da
própria produção burguesa, a saber, a necessidade de cristalizar a riqueza em um objeto
particular (que se tornará, deste modo, o meio de troca)" (p.146), qual seja, a mercadoria.
Na outra obra, "na Teorias da mais-valia, texto escrito em 1861, o termo fetichismo aparecerá diversas
vezes, sendo utilizado nos dois sentidos acima referidos, isto é, tanto para se referir a uma
confusão na consciência de alguns economistas, quanto a uma propriedade objetiva do processo
capitalista." (p.146)
Marx vai mais longe, quando explica que "a teoria do fetichismo está associada à
ossificação das relações sociais e se refere, explicitamente, a um processo de transubstanciação [que é a transformação de uma substância em outra, por exemplo, a presença de Cristo na hóstia, para os católicos],
processo este que só será explicado no primeiro capítulo da obra que doravante será analisada" (p.146), ou seja, n'O Capital, que se encontra no Livro I O processo de produção do capital, na Seção I Mercadoria e Dinheiro, no Capítulo 1 A mercadoria e parte 4 O caráter fetichista da mercadoria e seu segredo.
É "neste primeiro capítulo [de O Capital que] Marx analisa, grosso modo, a mercadoria e o dinheiro, categorias estas que precedem, ao menos no modo de apresentação dialético da obra, a própria
categoria do capital." (p.147)
"Destarte, é duplo o aspecto pelo qual a mercadoria, o dinheiro e o capital são categorias
fetichistas." (p.149)
"Por um lado, neles ocorrem o misterioso ato da transubstanciação: o trabalho já
realizado, despendido na transformação da matéria, se cristaliza a si mesmo no objeto que
fabrica. Assim uma mesa, por exemplo, em uma sociedade mercantil não é apenas um objeto
em torno da qual as pessoas sentam, mas também a encarnação de uma determinada quantia de tempo de trabalho, coisificadas no valor que compõe seu preço." (p.149-150)
No que foi explicado, compreende-se que "Marx não está, obviamente,
dizendo que as coisas já foram dadas ao homem prontas ou que este não labutou penosamente na
transformação de uma matéria bruta em algo útil para ele. O que ele diz é apenas que a crença de
que este trabalho se corporifica, se transubstancializa, na mercadoria é um misticismo, consiste
em um pensamento mágico, irracional. O trabalho gasto desaparece, nada mais; o que fica é
apenas a matéria bruta transformada." (p.150)
Já, "por outro lado, mas decorrente do primeiro aspecto, é que os únicos objetos que
participam de dois mundos concomitantemente, caso da mercadoria, mas também dos talismãs e
outros objetos divinificados, são os fetiches." (p.150)
Como, por exemplo, "tal como para o verdadeiro católico a hóstia não
apenas é um insosso pão ázimo, mas, após a consagração, também o corpo de cristo (e leia-se,
literalmente o corpo de cristo), para o indivíduo partícipe das sociedades mercantis a mercadoria
é tanto um determinado objeto físico, sensível, quanto a objetificação de um trabalho já passado
e, portanto, metafísico, suprassensível." (p.150)
Isto porque, segundo Marx, "a natureza dos objetos fetiche é ser tanto um objeto
determinado, concreto, quanto, ao mesmo tempo, algo distinto deste que é aí 'encarnado'; este
pode ser um deus, cristo, um espírito qualquer ou, neste caso específico, o trabalho passado." (p.150)
Assim, "como já dito antes, o termo fetiche acompanha, em O Capital, três categorias: a
mercadoria, o dinheiro e o capital. Mercadoria é todo fruto do trabalho humano que intencional
ou acidentalmente é trocado como equivalente por outro. Dinheiro é o equivalente geral das
mercadorias, a encarnação direta do valor. Capital, por fim, é tanto dinheiro quanto mercadoria,
é, na verdade, um incessante processo no qual dinheiro torna-se mercadorias para depois voltar a
ser dinheiro, mas em um montante maior; é valor em perpétuo processo de engrandecimento." (p.150)
Mas, "o que as três categorias têm em comum? O fato de serem encarnações do valor." (p.150)
Então, o "valor é o tempo de
trabalho abstrato socialmente necessário despendido na confecção do objeto que o contém.
Manifesta-se sempre no valor de troca deste objeto em questão, seja mercadoria, dinheiro ou
capital. Separa-se da dimensão do valor de uso na categoria do dinheiro, e ganha a qualidade
mágica da automultiplicação na categoria do capital." (p.150)
É em todo o processo capitalista que se impregna na categoria mercadoria e em "que nada mais é do que o desenvolvimento da própria categoria do capital, surge
precisamente por meio da reificação das relações sociais, reificação esta que se dá pela
objetificação fetichista do trabalho abstrato despedido nas mercadorias." (p.151)
Assim, Marx vai dizer ainda mais que "este processo [de produção de mercadorias] – processo
que é feito pelos homens, mas do qual eles não têm controle, não dominam, e pelo qual os
próprios homens acabam sendo dominados – faz da sociedade capitalista mais uma sociedade
“opaca”, tal como as medievais, mas sua “opacidade” não se deve ao vínculo religioso que a
forma, mas sim ao vínculo mercantil. (p.151)
Disto resulta que "a principal consequência prática desta opacidade social é que há uma inversão da
finalidade da produção. Se os homens até então, de modo geral, trabalharam fabricando produtos
visando ao seu consumo (isto é, visando ao valor de uso; que criassem também valor de troca era
algo quase acidental), no capitalismo, e esta é uma das suas características específicas, a
finalidade da produção é, em primeiro lugar, a criação de mais valor (ou seja, valor de troca, que
produzam ao mesmo tempo valor de uso é contingente, casual)." (p.151)
Na conjuntura de guerra, miséria, fome, tragédias etc. em que vive a humanidade, isso de nada atormenta a moral capitalista; uma vez que "o capitalista produtivo não decide fabricar calçados ou armamentos por
achar que o mundo carece destes produtos, sua decisão, grosso modo, decorre daquele setor que
dará melhores retornos financeiros (embora existam, em algum grau, fatores morais que devam
ser levados em conta nas escolhas deste tipo). O acionista [,do capitalismo rentista,] não aplicaria o capital em uma empresa
que desse à necessidade do consumidor prioridade ante sua própria sede de lucro." (p.151)
Em continuidade a sua crítica ao regime de produção capitalista, Marx o associa à Religião, pela sua ideologia. Vai argumentar que "a semelhança destas duas formas de dominação é que em ambas os homens são dominados
por produtos que eles próprios criam, mas estes produtos assumem, frente aos homens, uma
objetividade aparente, uma existência aparentemente autônoma, e por este motivo não são
controlados por seus criadores." (p.152)
Portanto, "a crítica ao capitalismo se torna assim semelhante à crítica à religião e à superstição, pois
em todos estes casos as crenças subjetivas dos homens, que se objetivam em instituições e
mesmo em costumes, impedem que estes tenham uma relação racional com o mundo, relação esta
que faria dos homens seres autônomos, isto é, criadores conscientes de seu mundo social
circundante." (p.152)
Entretanto, Marx não fica apenas na crítica - profunda, é certa, do capitalismo -; mas, propõem a sua superação, ou seja, na construção "de uma sociedade não fetichista,
uma sociedade, portanto, na qual são abolidas as categorias intrinsecamente fetichistas, a saber, a
mercadoria, o dinheiro e o capital." (p.153)
Nessa nova sociedade "o que se abole, assim, é o próprio valor como forma de
mediação social; de modo que o vínculo social, a relação entre os produtores associados, passa a
ser 'transparente', isto é, conhecida por eles." (p.153)
Isto porque a moderna sociedade na qual estamos vivendo "... conta com um imenso progresso
nas forças produtivas, progresso este que faz com que menos trabalho, menos esforço físico,
resulte em um montante maior de produtos." Progresso este que "decorre, em grande parte, da
combinação de um grande número de trabalhadores em um processo de fabricação comum, que
cria uma acentuada divisão do trabalho e permite o uso de maquinarias caras, as quais só são
viáveis em casos de grandes produções." (p. 153)
Com o acúmulo deste Progresso é que o "modo o trabalho social, característico do capitalismo, tem grandes vantagens sobre o individual, comum nas formas pré-capitalistas de
organização social, e deveria ser mantido em uma possível sociedade comunista." Isto porque, "o que se abole é
a propriedade privada dos meios de produção, que passam a ser propriedade comum dos
trabalhadores associados." Sendo "o montante de produtos do processo de trabalho deixa de ser
propriedade privada do capitalista para se tornar também uma propriedade comum, que será
então distribuída conforme a decisão dos produtores reunidos." (p. 153-154)
Isto porque "os
produtores tornam-se assim senhores de seu processo de trabalho, usando-o para alcançar o
necessário a uma vida autônoma; ao invés de, por meio de sua própria cegueira, causada pelo
valor como forma de mediação social, serem usados pelo seu próprio meio de produção com a
finalidade de produzir um montante cada vez maior de valor." (p. 154)
É o que Marx vai se referir n'O Capital, em a Mercadoria:
"O reflexo religioso do mundo efetivo só pode desaparecer, em geral, quando as relações no mecanismo da vida prática cotidiana se apresentarem para os homens diariamente como referências transparentes e racionais de uns com os outros e com a natureza. A figura do processo de vida social, isto é, do processo de produção material, despirá o seu véu de névoa mística apenas quando se colocar como produto de homens livremente sociabilizados e sob seu controle consciente e planificado."
NOTAS
*Professor de Filosofia, Pesquisas em Filosofia e Educação, com Pós-Graduações.
-Os grifos em negritos e itálicos tem por finalidade das destaques aos termos e categorias do texto em construção.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
FLECK, Amaro. O conceito de fetichismo na obra marxiana. Disponível em: <file:///C:/Users/Asus/Downloads/26206-Texto%20do%20Artigo-86007-1-10-20120907%20(1).pdf>; Acesso em<02/10/2023>.
MARX, Karl. O Capital. Livro 1. São Paulo : Boitempo, 2013.
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