A Crítica de Marx do Programa Liberal do Partido Operário

    Neste texto será tratado da análise criteriosa e profunda a que Marx construiu na "Crítica do Programa de Gotha" (1875), sobre o "Projeto de Unificação dos Partidos Socialistas Alemães", assim como das suas duas tendências, a de um lado a lassalistas e a do outro a marxiana; trata, também, das divergências de concepções que Marx têm com os lassalistas.     E destaca, a partir da crítica política de Marx, a necessidade de um Estado de transição, denominado Socialista, para a constituição de uma outra sociedade, que tenha a classe trabalhadora como sua protagonista, a Comunista.
    No cerne da crítica de Marx está o fato de que o Programa não propõe o elementar para a construção de uma sociedade justa: que deveria ser a da derrubada da monarquia; assim como a sociedade futura de Lassalle, que aponta que a riqueza produzida será realizada pelo "Estado livre do povo" (?); quando Marx a ironiza, apresentando uma outra proposta, muito distinta, como a necessidade de um Estado de Transição Socialista e por fim a Comunista.
    O Contexto é o ano de 1875, em Gotha, cidade alemã, quando acontece o Congresso de Unificação - que estavam fragmentados - os dois partidos operários alemães: Associação Geral dos Trabalhadores Alemães (ADAV), fundado em 1863, em Leipzig, por Ferdinand Lassale (1825-1864) e o Partido Social-Democrata dos Trabalhadores (SDAP), fundado em 1864, em Eisenach, por Wilhelm Liebknecht (1826-1900), Wilhelm Bracke (1842-1880) e August Bebel (1840-1913), dirigentes socialistas mais próximos a Karl Marx (1818-1883).
    O intelectual a quem Marx vai se contrapor teoricamente é Ferdinand Lassale e seus seguidores, cuja capacidade foi de grande importância para a época, porém faleceu cedo (39 anos) em um duelo, cuja postura e liderança política era qualificada, como bom orador; porém, os dois tinham um relacionamento tenso, mas se respeitavam mutuamente.
    Marx, porém, tinha uma certa desconfiança com Lassale, pela ideia de anarquismo e cooperativismo idealizado, com posturas de aproximação com o governo conservador monarquista da Alemanha da época, o então Otto von Bismarck (1815-1889), que lhe pedia ajuda para a constituição de Cooperativas e, por conta disto, iria trair todo o Movimento da classe trabalhadora; quando, posteriormente ao fato, fora comprovado essa intuição de Marx. (Nota de Rodapé, ps. 26-27).
    Ao fazerem a Unificação destes dois Partidos, os lassalianos elaboraram um Programa de Unificação, denominado de Programa de Gotha, com apenas 3 páginas; a que Marx irá contrapor-se, na elaboração da Crítica minuciosa, nas suas 25 páginas.
    Marx vai responder ao texto do Programa, depois de um amplo e aprofundado estudo, com uma crítica mordaz, - muito diferente da dos burgueses, que fazem apenas uma análise abstrata, superficial, pouco científica da realidade - de maneira implacável, extremamente rigorosa, com uma análise bem meticulosa daquilo que é tratado no Programa, ou seja, nos escritos liberais, que repetem as propostas burguesas em seus objetivos políticos, sem nenhuma referência a nenhuma outra sociedade futura.
    Enquanto no Programa irá se encontrar concepções liberais, apontando para um ideal de sociedade utópica; Marx vai contrapô-la, com sua crítica radical. Porque Marx compreende o Comunismo como o desdobramento da sociedade atual, construído pela classe trabalhadora, como uma sociedade mais justa, equânime, progressista ... e vai escrever, em suas várias obras, os meios para alcançá-las. Diferente desses idealistas e liberais, Marx não engendra idealmente uma sociedade perfeita tal como "A República", de Platão; "A Utopia", de Tomás Morus; "A cidade do sol", de Tommaso Campanella que, de tão perfeita que é, são deveras estáticas, porque são sociedades que não mudam.
    Diferentemente destes autores, Marx apresenta sua concepção de movimento, em sua metodologia do Materialismo Histórico, Dialético e da Práxis.
    Na carta que Marx escreve a Willhelm Bracke (p. 20), por exemplo, pode-se destacar o alerta dialético, ao afirmar que a "cada passo do movimento real é mais importante do que uma dúzia de programas". Nela, Marx apresenta a sua concepção de Práxis, ou seja, a de movimento que parte da teoria - que irá fundamentar a prática -, afirmando que na prática se encontra o critério de verdade (Tese 2 contra Feuerbach). Então, não basta simplesmente a teoria em abstrato; mas, que essa tem que se fundamentar na prática. Na mesma concepção, Lênin irá confirmar que "sem teoria revolucionária, não pode haver movimento revolucionário." (O que fazer?). Portanto, a classe trabalhadora necessita de uma teoria para a solidificação de sua luta de classes, ou seja, a luta contra toda a opressão da classe do capital.
    Como de fato, na práxis, como muito bem descrita no livro "A Filosofia da Práxis", de Vazquez, caracteriza-se por essa interlocução (movimento) dialético entre teoria-prática: quando a teoria fundamenta a prática e - na consolidação desta - se depara com uma complexidade do real que, por sua vez, necessita de uma outra teoria, para a continuidade de seu movimento histórico, eternamente.
    Marx vai iniciar a crítica a partir da concepção de trabalho liberal que é tratado no Programa, contrapondo-se à essa, ao dizer nele que o "trabalho não é a fonte de toda a riqueza." Pelo contrário, a Natureza também o "é a fonte dos valores de uso ... tanto quanto o é o trabalho, que é apenas a exteriorização de uma força natural, da força de trabalho humano". (p. 23). Aqui Marx traz o conceito de Natureza, que vai ser apropriado pelos Ecossocialistas mais tarde.
    Uma outra crítica de Marx é sobre a visão reducionista dos lassalistas - trata-se de um delírio da concepção de trabalho dito no Programa -, na afirmação de que a "... libertação do trabalho tem de ser obra da classe trabalhadora" (p. 33), da qual Marx vai rebater, contrapondo-se a eles, na afirmação de que "o proletariado é revolucionário diante da burguesia, porque, sendo ele mesmo fruto do solo da grande indústria, busca eliminar da produção seu caráter capitalista" (p.34), a fim de construir uma outra sociedade distinta da que explora a força de trabalho e lhe expropria toda a riqueza produzida pela classe trabalhadora.
    Isto posto, Marx vai dizer que, no regime da Transição, que é o Socialismo, haverá um outro regime de trabalho -, quando não se fará a libertação do trabalho; mas, a da exploração capitalista pela classe trabalhadora; porque o trabalho continuará sempre existindo. Marx se aprofunda na sua concepção de trabalho na "Ideologia Alemã", ao dizer o que diferencia os demais animais dos seres humanos é o trabalho; é o ser humano que produz, controla o seu tempo, planeja, reflete ..., ou seja, projeta na sua mente aquilo que irá executar; diferente dos animais que apenas seguem o seu instinto.
    Portanto, enquanto houver sociedades humana, haverá sempre a necessidade do trabalho, para prover a sobrevivência e a reprodução humana. Por conseguinte, a forma como o trabalho ocorre, o desenvolvimento tecnológico, a forma como é apropriado etc., integram as características basilares de qualquer sociedade humana.
    Num outro ponto do Programa afirmam os lassalistas que os trabalhadores devem se apropriar integralmente dos frutos do próprio trabalho; nisso, encontra-se um grande equívoco, nesta afirmação, segundo Marx. Isto porque nas sociedades existem pessoas vulneráveis, que não podem trabalhar, como as crianças e os idosos, e até mesmo um trabalhador que não esteja envolvido na atividade de produção direta, como nas pesquisas científicas, que somente em algum tempo posterior é que se poderá ver algum resultado! Então, como ficam a sua condição de vida? É quando se precisaria de um ente para coordenar esse trabalho, que se apropriasse dele e dividisse seus resultados socialmente, para com todas as pessoas da sociedade. Daí, é que se chegaria a um ponto crítico! Quem irá organizar essa responsabilidade da divisão social justa?
    O Programa traz a sua proposta, com a pergunta sobre o "Estado Livre"?, e o que Marx aponta é que "Essa pergunta só pode ser respondida de modo científico, e não é associando de mil maneiras diferentes a palavra povo à palavra Estado que se avançará um pulo de pulga na solução do problema." (p. 43), falando assim de forma irônica.
    E, no que tange ao direito, aponta que "nunca pode ultrapassar a forma econômica e o desenvolvimento cultural, por ela condicionado, da sociedade." (p. 31). Daí, a sua importância em superar a sociedade antagônica que a engendra.
    Marx destaca que haveria esse período de transição do regime capitalista para o comunista, na sua etapa revolucionária: "A ele corresponde também um período político de transição, cujo Estado não pode ser senão a ditadura revolucionária do proletariado." (p. 43).
Porém, o que se precisa entender sobre o conceito de "ditadura do proletariado" não é aquele associado ao regime autoritária ou mesmo totalitário, ou seja, um anacronismo, porque na época, Marx apresentava uma outra conotação. Explicitando melhor, a ditadura era uma atividade em circunstâncias excepcionais, para fazer frente a situações de emergências, como uma crise interna ou uma guerra, na Roma antiga. É com essa acepção que Marx vai utilizar-se desse termo, como a de um comando de uma classe sobre a outra, compreendendo-se que o proletariado deveria ter o comando do Estado para desfazê-lo da sua dominação burguesa capitalista; sendo o objetivo da classe trabalhadora será a conquista do poder político, com os seguintes processos:
1. Superar a escravisante subordinação do indivíduo à divisão do trabalho, quando afirma a "... fase superior da sociedade comunista, quando tiver sido eliminada a subordinação escravizadora dos indivíduos à divisão internacional do trabalho ...". (p. 31).
2. Superar o antagonismo, "a oposição entre trabalho intelectual e manual." (p. 31).  Nela aponta a necessidade de superar essa divisão do trabalho, do capitalismo, aqueles que planejam (intelectual) e aqueles que executam (braçal), expresso muito bem no filme de Charles Chaplin "Tempos Modernos".
3. Nos alerta para a necessidade de "quando o trabalho tiver deixado de ser mero meio de vida e tiver se tornado a primeira necessidade vital" (p. 31); isto porque, como aponta Marx nos "Manuscritos Econômico-Filosóficos", de que a forma como o trabalho se realiza na sociedade capitalista, trata-se de uma espécie de trabalho castrador do ser humano em todas as suas potencialidades e capacidades, ou seja, promove um trabalho desumanizador; quando o ser humano não se realiza enquanto trabalhador. E é por isso que o trabalhador foge do trabalho, no capitalismo, como foge da peste. Daí que propõe que o trabalho seja humanizador, que seus produtores direto possam ser apropriados coletivamente dos resultados dos seus trabalhos; e, por isso, possam se realizar de maneira mais plena, naquilo que executam.
4. Criar as condições para o pleno desenvolvimento dos indivíduos em todos os sentidos. Aqui já há um alerta de Marx, ao afirmar que o ser humanos pode exigir mais, aprender mais etc., sem ficar em uma atividade repetitiva e brutalizada, por toda a vida, como no capitalismo. Nela afirma da importância do "desenvolvimento multifacetado dos indivíduos", ou seja, não é mais aquele indivíduo unilateralizado, que sabe fazer apenas uma única coisa; mas, na sua plena capacidade, deve ocorrer o desenvolvimento das forças produtivas, dos meios de produção, que vão permitir que mais riquezas sejam criadas.
5. Enfim, produzir em abundâncias para que possa cada um que ofereça o trabalho de acordo com a sua capacidade e retire da riqueza social produzida, de acordo com a sua necessidade. Somente desta forma se pode superar os limites do horizonte do direito burguês e o Estado desaparece.
 "... quando, juntamente com o desenvolvimento multifacetado dos indivíduos, suas forças produtivas também tiverem crescidos e todas as fontes da riqueza coletiva jorrarem em abundância, apenas então o estreito horizonte jurídico burguês poderá ser plenamente superado e a sociedade poderá escrever em sua bandeira: "De cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades!". (p. 31-32).
    Com isso, Marx vai destacar diversas vezes que o trabalho é uma atividade humanizadora por excelência; porém, precisa desenvolver as forças produtivas para que possa liberá-los para o viver e se realizar na sua plenitude, quando usufrui-se da arte, da literatura, da cultura, esportes; enfim, de todas as diversas atividades construídas pela sociedade, quando fazem parte e contribuem para a sua plena humanização.
    Além disso, reafirma a necessidade do desenvolvimento das forças produtivas, ou seja, do desenvolvimento das ciências, tecnologias, pesquisas e educação, para que todos os seres humanos possam usufruir socialmente; mas, de uma forma distinta do trabalho no capitalismo.
    Portanto, é no Socialismo, para Marx, que é o regime de transição do capitalismo para o Comunismo; regime esse no qual a classe trabalhadora controlam os meios de produção, a modalidade do trabalho e o excedente econômico; mas, com a finalidade de destruir toda as estruturas e instituições capitalistas. Para, enfim, chegar-se ao Comunismo.
    Na construção teórica de Marx sobre a sociedade Comunista, este aponta que se trata do seu objeto no texto, explicando que está mais interessado em apresentá-la "como ela se desenvolveu a partir de suas próprias base", ou seja, assim "como ela acaba de sair da sociedade capitalista, portanto, trazendo de nascença as marcas econômicas, morais e espirituais herdadas da velha sociedade de cujo ventre ela saiu." (p. 29), quando deveria passar por um processo radical de clivagem, para descartá-los por completo da vida humana, os princípios burgueses capitalistas. Porém, alerta que na fase de transição do regime de produção capitalista para o comunista, as fases de "distorções são inevitáveis ... tal como ela surge, depois de um longo trabalho de parto, da sociedade capitalista." (p. 31).
    Assim, n'Crítica ao Programa, de Marx, aponta-se a sua importância contemporânea pelo fato de que consegue estabelecer determinados conceitos, por exemplo, o de Socialismo, com as perspectivas e as lutas necessárias da classe trabalhadora para a construção de uma nova sociedade que se contraponha à capitalista, devido ao fato da miséria a que se encontram a classe trabalhadora.
    Daí a crítica de Marx ao Programa liberal dos lasallista que, ao invés de buscarem a transformação da sociedade, buscam amenizar as condições precárias a que vivem a classe trabalhadora, com a caridade das esmolas e migalhas que caem dos banquetes da burguesia exploradora.
    Como conclusão da crítica de Marx ao Programa se destaca que o este "está totalmente infestado da credulidade servil no Estado [capitalista] que caracteriza a seita lassalliana, ou, o que não é melhor, da superstição democrática [burguesa], ou, antes, consiste num arranjo entre esses dois tipos de superstição, ambos igualmente distantes do socialismo". (p. 46).
    Isto porque Marx compreende o Comunismo - primeiramente n' "A Ideologia Alemã" de maneira abstrata, depois de maneira mais específica n' "O Capital" - como o desdobramento da sociedade capitalista para uma sociedade mais justa, equânime, progressista ... e vai escrevendo os meios para se avançar para a sociedade do futuro, tomando como sujeito histórico a classe trabalhadora.
    Porém, Marx não apresenta uma proposta definida de sociedade idealizada, como fazem os utópicos, de construírem sociedades que não mudam. Porque entende que a transformação da sociedade capitalista é obra e está nas mãos da classe trabalhadora.

NOTAS


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
MARX, Karl. Crítica ao Programa de Gotha. São Paulo : Boitempo, 2012. Disponível em <https://www.gepec.ufscar.br/publicacoes/livros-e-colecoes/marx-e-engels/critica-do-programa-de-gotha.pdf>.


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