A Relação entre o Julgamento Jurídico Institucional e o Julgamento do Senso Comum

A Relação entre o Julgamento Jurídico Institucional e o Julgamento do Senso Comum

*Luiz Antonio Sypriano

Resumo

O presente artigo analisa a relação entre o julgamento jurídico institucional e o julgamento do senso comum, destacando suas diferenças epistemológicas, estruturais e morais. Enquanto o julgamento jurídico fundamenta-se em normas, garantias e procedimentos racionais, o baseado no senso comum deriva de moralidades sociais espontâneas permeadas por preconceitos, estigmas e valores tradicionais. Por meio de autores como Aristóteles, Kelsen, Bobbio, Durkheim, Becker e Foucault, examina-se a tensão entre formalidade e informalidade nos processos de atribuição de culpa e condenação. Conclui-se que a instituição do julgamento jurídico busca limitar arbitrariedades e moralismos, embora não esteja totalmente imune às influências do “imaginário” social.


Palavras-chave: Justiça; Direito; Senso comum; Julgamento; Moralidade.


Introdução

A necessidade de resolver conflitos, definir responsabilidades e manter a coesão social acompanhou todas as sociedades historicamente constituídas. Para tanto, desenvolveram-se mecanismos formais destinados a julgar comportamentos e aplicar sanções.

No processo jurídico moderno, que representa uma dessas formas institucionalizadas de julgamento, está ancorada em procedimentos normativos e de garantias, que visam assegurar a imparcialidade. Mas, simultaneamente, a sociedade produz julgamentos informais, baseados no senso comum e orientados por moralidades difusas e emoções coletivas.

Assim, conforme afirma Bobbio (2007), “o direito nasce da necessidade de transformar a força em regra e a violência em procedimento”. Em contrapartida, como observa Becker (2008), a sociedade continua a produzir “empreendedores morais” que definem quem é desviado e quem é normal.

É esta relação entre esses dois modos de julgar que constitui o foco deste estudo.


Os Fundamentos Teóricos: Justiça, Direito e Moralidade Social


Justiça como ideal normativo

Desde Aristóteles, a justiça é interpretada como um princípio moral regulador da vida social. Em Ética a Nicômaco, o autor afirma: “a justiça é a completa virtude” (ARISTÓTELES, 2009, p. 112). Esse ideal, denominado de virtude, é o que orienta as expectativas sobre equidade, proporcionalidade e retidão.

Na modernidade, Rawls (1971) retoma essa tradição ao definir a justiça como “a primeira virtude das instituições sociais” (p. 3), enfatizando a racionalidade e a imparcialidade como critérios centrais.


Direito como sistema formal

Na tradição positivista, especialmente na obra de Kelsen, busca separar direito e moral. O autor afirma: “o Direito é uma ordem normativa coercitiva, distinta das normas de moral” (KELSEN, 1998, p. 64). Assim, no processo jurídico pretende-se abstrair de julgamentos morais particulares para garantir previsibilidade e segurança.

Enquanto Bobbio (2007) reforça essa ideia ao afirmar que o direito moderno depende de regras públicas, formais e verificáveis, as quais funcionam como barreira contra a arbitrariedade.


Moralidade social e senso comum

Enquanto o direito opera com racionalidade formal, o senso comum baseia-se em convenções sociais, estigmas e percepções coletivas. Durkheim (2011) explica que a moral cotidiana expressa “as representações coletivas” que estruturam o comportamento social (p. 87).

Becker (2008), por sua vez, complementa a análise ao demonstrar que o desvio e conformidade são definidos socialmente, e que “grupos sociais criam o desvio ao estabelecer regras cuja infração constitui desvio” (BECKER, 2008, p. 9).


O Julgamento Jurídico como Instituição Moderna


Estrutura normativa e racionalidade

O julgamento jurídico, nas sociedades modernas, caracteriza-se por uma estrutura destinada a garantir a imparcialidade de seus atos. Elementos como contraditório, presunção de inocência, ampla defesa e fundamentação da decisão constituem, conforme Bobbio (2007), “as colunas do Estado de Direito”.

Esses mecanismos visam impedir que decisões se baseiem em emoções, preconceitos ou pressões sociais.


Os atores institucionais

No julgamento, o juiz atua como intérprete da norma; a promotoria, como acusação pública; a defesa, como garantidora da liberdade individual; as testemunhas, como fontes factuais; e os jurados, quando existentes, como expressão democrática.

Reforçado por Kelsen (1998), que afirma que o julgamento deve ser “ato de aplicação da norma, submetido a critérios objetivos” (p. 124).


O Julgamento do Senso Comum: Moralismos e Estereótipos


Entretanto, no julgamento informal, é operado sem garantias processuais. Foucault (2014) descreve que, nas sociedades modernas, práticas difusas de vigilância e punição instauram “tribunais permanentes e invisíveis” (p. 213), nos quais o indivíduo é avaliado - apenas - moralmente.

Esse julgamento social se expressa por:

  • fofoca;

  • rumores;

  • estigmatização;

  • discriminação racial, de classe e de gênero;

  • condenações públicas e cancelamentos.

Que Goode e Ben-Yehuda (1994) analisam a formação de pânicos morais, nos quais grupos são julgados e condenados sem qualquer procedimento racional.


A Tensão entre Direito e Senso Comum


O direito como limite à arbitrariedade

Se o surgimento do Estado moderno buscou transformar vingança privada em procedimento institucional, no qual afirma Bobbio (2007), que o direito representa “uma técnica civilizatória”, destinada a conter impulsos irracionais da coletividade. Por outro lado, não é o que se percebe nas sociedades modernas, ditas civilizadora.


A influência do senso comum sobre o direito

Apesar das garantias, juízes, promotores e jurados são sujeitos atravessados por moralidades sociais. Foucault (2014) observa que o poder disciplinar penetra instituições estatais, tornando-as permeáveis às percepções sociais predominantes.

        Assim, preconceitos, pressões midiáticas e moralismos podem influenciar decisões.


O risco da regressão ao julgamento arbitrário

Isto acontece quando o devido processo legal é enfraquecido, e abre-se espaço para práticas inquisitoriais. Como alerta Kelsen (1998), com isso, “a justiça sem lei converte-se em arbítrio” (p. 201).


Considerações Finais


No julgamento jurídico institucional busca-se construir decisões racionais e imparciais, enquanto no do senso comum é baseado em moralidades espontâneas, frequentemente excludentes e discriminatórias. Por conseguinte, essa tensão entre ambos exige vigilância contínua para impedir que o direito seja capturado por paixões sociais, preconceitos ou pressões públicas. Assim, ao se defender o devido processo legal significa defender a racionalidade e a justiça contra a arbitrariedade e o moralismo vulgar.


Referência Bibliográfica


ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Martin Claret, 2009.

BECKER, Howard. Outsiders: Estudos de Sociologia do Desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. Brasília: UnB, 2007.

DURKHEIM, Émile. As Regras do Método Sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 2014.

GOODE, Erich; BEN-YEHUDA, Nachman. Moral Panics: The Social Construction of Deviance. Oxford: Blackwell, 1994.

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

RAWLS, John. A Theory of Justice. Cambridge: Harvard University Press, 1971.


*(Professor de Filosofia da Rede Pública Estadual - Pr)


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