A FILOSOFIA ÉTICA AFRICANA COSMOPOLITA UNIVERSAL
*Luiz Antonio Sypriano
Costuma-se atribuir a invenção da Filosofia e da ética aos gregos antigos, pelos idos do Século VI antes da nossa era (ANE). Entretanto, outros povos e culturas já haviam desenvolvidos suas próprias formas de pensamento filosófico a partir de seus contextos históricos; um exemplo é a da Filosofia Ética africana Ubuntu, cujo povo Bantu possuía uma ontologia, uma metafísica, uma epistemologia, uma psicologia, uma ética e uma religião baseadas na concepção do ser como força, que concorre sempre para procurar a vida.
Por sua vez, a palavra Ubuntu tem origem na língua Zulu e Xhosa, de cultura Bantu, pertencente a vários povos da África, principalmente os do sul do continente; como não tem tradução no português, de forma aproximada se traduz como "Eu sou porque nós somos" e também pode se dizer como a “Humanidade para todos”.
Assim, embora não haja tradução literal, o significado da palavra Ubuntu nos remete a existências conectadas entre si, ou seja, é uma Filosofia onde a vida do indivíduo só tem sentido na relação com os outros; por sua vez, exprime a consciência da relação entre o indivíduo e a comunidade, que aponta a humanidade para todos.
Como representação desta Filosofia está na Mandala, feita com os pés descalços das crianças, como unidade da ética Ubuntu, cujo lema é “Eu sou, porque nós somos”!
Por conseguinte, a Filosofia africana Bantu é um pensamento crítico, que nasceu quase no final da primeira metade do século passado, apresentando como principal incumbência, negar os pressupostos hegelianos -, amplamente difundidos no ocidente -, de que os homens e as mulheres que viviam no sul do Saara não tinham nenhum sistema filosófico e, pior ainda, não seriam capazes de filosofar.
Mas, foi o missionário franciscano belga Placide Tempels (1906-1977) quem, paradoxalmente, inaugurou oficialmente essa crítica. Em seu livro — já imprescindível nesse campo – La Philosophie bantoue (Paris: Présence Africaine, 1945), publicado pela primeiro vez em holandês, em 1944, e traduzido, um ano mais tarde, para o francês, demonstrou metódica e comparativamente que os Bantu tinham uma Filosofia como os europeus, mas diferente.
Sendo que a ontologia Bantu dista da ontologia clássica ocidental - que considera o ser enquanto ser. Ao contrário, para os Bantu, o ser é força, ou melhor, é força vital, porque existe uma relação intrínseca entre força e vida.
Nesta ótica, o ser é sempre concretamente dinâmico; expressa-se como força, a mesma que é a exteriorização da energia e, por conseguinte, está sempre em relação ativa com a vida para aumentá-la e, às vezes, diminuí-la.
Segundo o filósofo sul-africano Mogobe Bernard Ramose, exilado durante o apartheid, é um dos mais expressivos nomes da Filosofia Africana, responsável pela popularização da ética Ubuntu, que aponta que, quando falamos da coletividade Ubuntu nos dirigimos também à fauna, à flora e ao sobrenatural que constituem a comunidade. Para o filósofo,
“Ubuntu é a raiz da filosofia africana. A existência do africano no universo é inseparavelmente ancorada sobre Ubuntu. Semelhantemente, a árvore de conhecimento africano deriva do Ubuntu com o qual é conectado indivisivelmente.”
Quando afirma que Ubuntu se baseia na ideia de que somos indivíduos em comunidade e que a nossa identidade está intrinsecamente ligada à comunidade em que vivemos.
Portanto, reivindicar uma racionalidade diferente, isto é, uma cosmovisão diferente, uma maneira diferente de ver o mundo e de viver nele, é assumir-se simplesmente como humano e, por conseguinte, posicionar-se na existência.
Enquanto que na perspectiva de uma moralidade, fundada na ética africana, afirma-se que “a ética que não pensa só no indivíduo, mas sim no indivíduo integrado ao coletivo”, é o que caracteriza a Ética Ubuntu.
Portanto, a Filosofia Ubuntu fundamenta-se em uma ética da coletividade, representada principalmente pela convivência harmoniosa com o outro e baseada na categoria do “nós”, como membro integrante de um todo social.
Desta epistemologia, pode-se afirmar que há uma mudança radical de concepção ontológica na Filosofia Ubuntu - em relação à européia - que se expressa nos três postulados éticos que emergem, quais sejam:
primeiro, todas as pessoas são valiosas em si mesmas, motivo pelo qual ninguém pode ser considerado como inútil na sociedade;
segundo, se todas as pessoas são valiosas em si mesmas, segue-se que são sujeitos, isto é, agentes que podem e devem incidir na sociedade na qual vivem;
terceiro, no horizonte do Ubuntu, os sujeitos são como tais pela relação intrínseca e imprescindível que têm com os demais humanos e a Natureza, daí a intersubjetividade inerente e constitutiva de cada indivíduo humano.
Sendo que o verdadeiro sentido da ética Ubuntu é a conexão com os seres vivos, os mortos viventes (as forças sobrenaturais) e os que ainda não nasceram, isto posto, há uma relação entre passado, presente e futuro, que busca sempre a harmonia e a manutenção da paz.
É o que afirma o arcebispo anglicano Desmond Tutu (1931 - 2021), ganhador do Nobel da Paz em 1984, ao dizer que quando queremos fazer conhecer todo o bem que pensamos de alguém, nós dizemos: tal pessoa tem o “UBUNTU”, o que significa que ela é generosa, acolhedora, amigável, humana, pronta a compartilhar o que ela possui. Sendo o mesmo o autor da teologia Ubuntu, cuja síntese é "a minha humanidade está inextricavelmente ligada à sua humanidade", quando essa noção de fraternidade implica compaixão e abertura de espírito e se opõe ao narcisismo e ao individualismo do mundo capitalista.
De uma maneira objetiva, mas contundente, o professor Jean Bosco Kakozi Kashindi demonstra um dos principais deslocamentos teóricos e práticos da racionalidade do continente africano em relação ao olhar ocidental hegemônico, ao afirmar:
“Com o Ubuntu operou-se a mudança da concepção da identidade a partir do ‘eu sou porque tu não és’ (concepção excludente) para o ‘eu sou porque nós somos, e dado que somos então eu sou’ (concepção includente)”.
Da mesma forma, se opondo ao pensamento eurocêntrico, o filósofo Tshiamalenga Ntumba chama de “Filosofia do Nós” à ética que não pensa só no indivíduo, mas sim no indivíduo integrado ao coletivo.
Importante destacar, também, o que diz o ex-presidente da África do Sul, Nelson Mandela (1918 - 2013), ao explicar esse ideal do Ubuntu:
“Respeito. Cortesia. Compartilhamento. Comunidade. Generosidade. Confiança. Desprendimento. Uma palavra pode ter muitos significados. Tudo isso é o espírito de Ubuntu. Ubuntu não significa que as pessoas não devam cuidar de si próprias. A questão é: você vai fazer isso de maneira a desenvolver a sua comunidade, permitindo que ela melhore?”
Após conhecer a base da Filosofia Ubuntu, pode-se afirmar categoricamente que a racionalidade ocidental chegou aos seus limites e nos está levando ao precipício da autodestruição! Portanto, é o momento de considerar novamente outras racionalidades que foram marginalizadas pela suposta “racionalidade universal”. Nisso, a Filosofia Africana se apresenta como uma alternativa humanitária
Isto porque já existem racionalidades anti-hegemônicas que, independentemente das polêmicas que há em torno delas, podemos asseverar que são racionalidades do Sul Global, como a da Filosofia da Libertação, o pós-colonialismo, o “giro decolonial”, o “pachamamismo”, a Filosofia Maia Tojolabal, o Ubuntu, entre outras, que são esforços louváveis na busca de outras vias para “sentipensar” a “nossa América”.
Por conseguinte, a Filosofia Ubuntu fala sobre estar aberto e disponível para os outros, apoiar os próximos, não se sentir ameaçado quando outros são capazes e bons, possibilitando unir forças para conseguir melhores resultados e entender que a diferença entre nós é o que gera o verdadeiro crescimento.
Em suma, a Filosofia Africana Bantu é uma reflexão crítica reivindicativa de um atributo eminentemente humano que é a razão. Se os africanos têm uma ontologia diferente, uma ética diferente, metafísica… infere-se que possuem uma racionalidade diferente da ocidental, capitalista.
Por isto, são capazes de ter consciência da posição que se ocupa no mundo, que é a da marginalização, da exploração e da dominação. Então, pelo simples fato de sentir a necessidade de gritar aos quatro ventos que os africanos pensam, que têm uma racionalidade…, é denunciar implícita e explicitamente a condição de existência da maioria dos africanos, a mesma que estes últimos compartilham proporcionalmente com outros habitantes do Sul Global.
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*(Professor de Filosofia na Seed-Pr)
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